George W. Bush pariu o Estado Islâmico ao invadir o Iraque. Agora, uma Síria arrasada pela guerra civil se torna o porto seguro dos decapitadores.
"A América enfrentará um inimigo que não respeita regras de moralidade", disse George W. Bush em março de 2003, quando anunciava o novo passo na sua "guerra ao terror": derrubar Saddam Hussein.
O ditador caiu rapidinho, mas, em vez de um "país unido, estável e livre", como diziam os EUA, o que surgiu foi o autoproclamado Estado Islâmico - um grupo jihadista sanguinário, que não apenas desrespeita "regras de moralidade", como também planeja estabelecer um império islâmico global sob a liderança de seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi - que chegou a passar um ano preso no Iraque pelos americanos, em 2004, junto com outros futuros cabeças do IS. Ou seja: as prisões militares serviram como universidade jihadista.
Mas a raiz dos problemas do Iraque é bem mais antiga: remonta a 1916, quando a França e o Reino Unido esboçaram as fronteiras de Iraque, Síria, Jordânia, Líbano e Palestina - territórios artificiais onde conviveriam diferentes etnias, religiões e tribos. No caso iraquiano, uma maioria xiita no Sudeste, uma minoria sunita no centro e uma minoria curda no Nordeste.
Saddam, no fim do século 20, perseguia a minoria curda do seu país e, como bom sunita, marginalizava a maioria árabe xiita. Com o ditador destronado e a introdução de eleições livres, veio a vingança. Os xiitas, que formam mais de 60% da população, ganharam a perspectiva de permanecer eternamente no poder. Não era um grande problema para os curdos, que tinham conquistado sua região autônoma, mas tratava-se de um desastre para os sunitas, que ressentiam a perda de poder. Na insurgência contra a invasão americana, destacava-se um grupo jihadista sunita: o "Al-Qaeda no Iraque", apoiado por antigos oficiais e soldados de Saddam. Em 2006, reuniu-se com outros grupos e se proclamou "Estado Islâmico no Iraque" (ISI, na sigla em inglês). Quatro anos depois, Abu Bakr assumiria a liderança do grupo.
Enquanto os EUA estiveram no Iraque, o ISI foi apenas um grupo insurgente. Isso mudou em dezembro de 2011, quando Barack Obama cumpriu sua promessa de campanha: abandonar o país. "O que alcançamos foi um Iraque com governo próprio, inclusivo e com um potencial enorme", disse, hesitante, ao lado do primeiro-ministro iraquiano, o xiita Nouri al-Maliki.
No dia seguinte à retirada americana, Maliki iniciou a marginalização política dos sunitas com um mandato de prisão do vice-presidente, sunita. Protestos foram crescendo até que, em abril de 2013, as forças de segurança de Maliki chacinaram os membros de uma manifestação pacífica.
Foi o ponto de virada para que sunitas apoiassem o ISI e comprassem o discurso de Abu Bakr: protestos pacíficos jamais acabariam com a perseguição; seria necessária a violência para devolver os territórios sunitas aos sunitas. Também em abril de 2013, o ISI anunciava sua entrada oficial na Síria, aproveitando os enormes vazios de poder deixados pela guerra entre o ditador Bashar al-Assad e os vários grupos rebeldes. Roubando para si parte dos militantes da Frente Nusra, afiliada à Al-Qaeda, Abu Bakr refundava seu grupo como Estado Islâmico do Iraque e da Síria - o ISIS.
E a mesopotâmia virou cenário de Mad Max. O ISIS invadiu o presídio de Abu Ghraib, na periferia de Bagdá, e libertou mais de 500 presos. Então seguiu capturando cidades ao longo dos rios Tigre e Eufrates até que, em junho de 2014, conquistou Mosul, segunda maior cidade do Iraque. Na Síria, expandiu-se pelo desértico leste do país e conquistou Raqqa, a sexta maior cidade de lá. No caminho, fez o que o ISIS faz: exterminou soldados iraquianos rendidos e roubou seu armamento, fornecido pelos EUA; saqueou comércio e bancos, incluindo US$ 425 milhões do Banco Central em Mosul; tomou poços de petróleo na Síria; estabeleceu "impostos" e taxas de extorsão em seus territórios, e saiu decapitando, executando, crucificando e escravizando sexualmente grupos não árabes ou não sunitas.
Em junho de 2014, Abu Bakr deu seu golpe mais ousado. Declarou-se "califa", título dos antigos chefes de Estado muçulmanos. Então mudou novamente o nome do grupo, agora para Estado Islâmico (IS). Desta vez, não se tratava mais de conquistar território sunita no Iraque e Síria, mas de eliminar a ideia de fronteiras nacionais e criar um mundo muçulmano, o que faz do IS inimigo de todos os Estados do planeta. Os EUA ficaram na deles, até que, em agosto de 2014, o IS ultrapassou a linha vermelha: o Curdistão iraquiano, lar de petroleiras americanas. Obama agiu com ataques aéreos, enquanto tropas curdas e iraquianas seguiram por terra. O IS reagiu divulgando no Twitter a decapitação de jornalistas americanos.
A ação dos EUA no Iraque enfraqueceu o IS ali. Mas recuar no Iraque significou avançar na Síria. Isso agravou a crise humanitária de uma guerra civil que, em cinco anos, já tinha matado 200 mil pessoas. E que força agora mesmo 4 milhões a buscar refúgio.
Na guerra civil síria, todos os atores envolvidos são adversários do IS. Mas nenhum deles o vê como inimigo número um. E isso fez do interior da Síria o porto seguro da organização. Bashar al-Assad está ocupado em controlar as regiões densamente povoadas em volta de Damasco e do litoral. Irã, Hizbollah e Rússia estão ocupados em manter Assad no poder. Países do Golfo estão ocupados em apoiar militantes contra Assad.
A Turquia está preocupada em não fortalecer as milícias curdas no Norte - mesmo que sejam os únicos combatentes com vitórias importantes sobre o IS. E os EUA estão determinados a não sacrificar nenhuma vida americana. No máximo, fazem bombardeios aéreos em alvos estratégicos, o que é irrelevante, já que os homens do IS ficam misturados à população civil.
Conforme a guerra se prolonga, o IS se estabelece, e os refugiados presos em campos superlotados buscam saídas. Atravessar o mar em direção à Europa seria um caminho razoável. Ou pelo menos era o que acreditava a família de Aylan Kurdi, o garoto curdo que nasceu na cidade síria de Kobani, invadida pelo IS, e morreu afogado, tornand0-se mártir de uma crise com muitos culpados, e nenhuma solução à vista.
Fonte: Maurício Horta/SUPER
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