quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Chacina em Costa Barros - Atirar primeiro e perguntar depois!




Wilton era o menino dos olhos da sua mãe. E da sua avó, com quem sempre dormia. Estudava contabilidade e, pela sua timidez, era raro vê-lo nas festas. Não bebia, conversava pouquinho e, com 20 anos, ainda pedia permissão para fazer planos. Assim foi no último sábado quando estacionou seu Fiat Palio branco na lanchonete onde sua mãe trabalhava de copeira e lhe disse que ia sair com os amigos, os da infância, com os que jogava videogame em casa. “Vai com Deus”, lhe disse a mulher, contente de ver o jovem na rua. Horas depois, Marcia Ferreira, de 38 anos, encontrou Wilton agonizando no volante do carro, perfurado por mais de 50 disparos de fuzil disparados por policiais. Junto com ele, jaziam banhados em sangue mais quatro amigos. Aos gritos, Márcia pediu para socorrer seu filho, mas a polícia não permitiu. Um dos agentes, assegura ela, lhe apontou um fuzil para afastá-la, e a mãe deu uns passos para trás enquanto Wilton morria, ainda com os olhos abertos. Dopada com tranquilizantes desde aquele dia, Marcia não conseguiu nem enterrar o filho nesta segunda-feira e desmaiou antes do funeral terminar. “Ele cuidava muito de mim. Quem vai cuidar de mim agora?”, pergunta a mãe antes de desabar.

A execução de Wilton, Wesley, Cleiton, Carlos Eduardo e Roberto em Costa Barros, um bairro pobre na Zona Norte do Rio, tinha todos os ingredientes para se fundir na estatística invisível dos autos de resistência no Estado do Rio de Janeiro, que justificaram, nos primeiros oito meses do ano, a morte de 459 pessoas em confronto com policiais, segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio. Eles eram jovens, pobres e negros – as principais vítimas de violência no Brasil – e rodavam à noite numa favela. Mas o tiroteio teve testemunhas que denunciaram que os agentes forjaram a cena do crime colocando uma arma perto do veículo e que aquilo foi uma emboscada. “É morador! É morador!”, gritaram os rapazes antes de morrer. Quatro policiais foram presos em flagrante e a versão de que estariam se defendendo de bandidos armados se desmoronou com as primeiras conclusões da perícia, que não achou indícios de disparos vindo do interior do carro.

Diante das evidências e os 50 disparos, o secretário de Segurança Pública, José Maria Beltrame, e o governador Luiz Fernando Pezão reconheceram com celeridade incomum o erro e qualificaram o crime como “indefensível” e “abominável”. Há três anos, o 41º batalhão de Irajá, onde trabalhavam os policias presos, é o que mais mata em supostos confrontos com a polícia. Houve 67 vítimas só de janeiro a outubro deste ano. Seu comandante foi exonerado. “Temos uma polícia pouco valorizada, mal remunerada e pessimamente treinada e espera-se que um rapaz com uma pistola e uma farda dê conta de um problema social de enorme complexidade”, lamentou Antônio Carlos Costa, diretor da ONG Rio de Paz que abraçou, logística e financeiramente, a causa das família.

No subúrbio de Costa Barros, o penúltimo bairro do Rio no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), baseado na saúde, educação e dignidade dos moradores, há meninos voltando da escola sem calçado, homens surgindo dos contêineres de lixo, pequenas cracolândias e muito medo. Tanto que até os familiares, descontrolados pela dor, medem cada uma das suas palavras para não incomodar nem traficantes nem policiais ao relatar o acontecido. “Na rotina das comunidades”, conta um morador da região, “a regra é sempre ver, ouvir e calar”. Os moradores sofrem há anos com a guerra de facções, entre o Comando Vermelho e Amigos dos Amigos, para se apoderar do controle dos pontos de droga e os complexos de favelas do entorno, como o de Pedreira e o Chapadão, estão na mira do Governo para serem ocupados pelo Exército antes das Olimpíadas de 2016, como já foi feito no Complexo da Maré nas vésperas da Copa do Mundo, em abril de 2014.

O crime dos jovens mobilizou a imprensa fluminense completamente, mas ainda assim uma mesma pergunta ecoa entre os familiares e amigos das vítimas: qual seria a comoção da sociedade se os cinco mortos fossem jovens brancos da Zona Sul? “Os tiros soam diferente na favela”, responde Mônica, mãe de Cleiton, de 18 anos. “Somos muito discriminados pelo ambiente onde a gente mora. Eles eram negros, favelados, foi por isso que nossos filhos foram mortos. Temos que mostrar que aqui é como em Copacabana. Em todo ser humano de Costa Barros corre o mesmo sangue que em Copacabana. Não tem nada de diferente”, disse Mônica, entre os aplausos dos seus vizinhos. Os familiares, reunidos nesta terça-feira na comunidade, estudam agora como se organizar para que a repercussão da morte dos jovens não morra junto com eles, já na semana que vem.



A tragédia acabou também com a vida das famílias. A mãe de Wilton não voltou a trabalhar, não dorme apesar dos remédios, desmaia com frequência e perdeu completamente o olhar. O filho caçula de 15 anos ia em uma moto na frente do carro que Wilton dirigia, conseguiu fugir dos disparos e testemunhou a execução. Ele declarou que foi uma emboscada, que o carro dos policiais estaria aguardando um comboio do tráfico. O único consolo que ela tem hoje é que o caçula e a sua neta, de cinco anos, que berrou para poder acompanhar os tios naquela noite, também poderiam ter sido mortos.

Jorge Roberto, o pai de Roberto, de 16 anos, passou os últimos dias recuperando fotos do filho nas gavetas de casa. Ele, que estudou Direito e trabalhava como soldador, chora em silêncio a morte de um menino que sorria e abraçava e que naquele sábado comemorava seu primeiro salário como aprendiz em uma rede de supermercados. Mônica cumpriu a promessa que fez ao filho de sepultá-lo junto com os amigos, e aguardou durante horas a chegada do corpo que só foi enterrado após às oito horas da noite, com o cemitério fechado e os faróis de um carro como única luz. Ela tem crises constantes de queda de pressão, não consegue comer e, na terça-feira, antes da reunião com outros moradores finalizar, teve que ser atendida num posto de saúde após ser retirada aos prantos e meio desmaiada entre vários dos seus vizinhos.


Carlos Henrique, o pai de Carlos Eduardo, de 16 anos, não conseguiu, até agora, voltar a dirigir o táxi do que depende o sustento familiar. “Eu não posso atender a um cliente assim”, lamentou e reconheceu que viver uns dias de luto sem trabalhar é um luxo que sua família está longe de poder se permitir. O governador Pezão disse que os familiares podiam contar com o auxílio do Estado, mas eles ainda esperam uma ligação. “Já que ele nem veio ao cemitério, o mínimo é que nos receba, né?”, cobrou Mônica. “Eu não quero saber de dinheiro, isso não vai trazer meu filho de volta. O que eu quero é Justiça”, disse Márcia.

Nos primeiros oito meses do ano houve 459 mortes justificadas como  confrontos com policiais
O caso dos cinco jovens será alvo de um processo criminal por homicídio doloso (com intenção de matar) e fraude processual, um processo interno da PM para apurar a responsabilidade dos agentes e decidir seu destino e uma ação indenizatória que as famílias ainda devem articular, explicou João Tancredo, o advogado de casos como o desaparecimento do pedreiro Amarildo, na Rocinha, ou a morte de Claúdia, que depois de ser alvo de disparos foi arrastada durante metros por uma viatura policial. Tancredo, de terno e gravata, mas curtido na defesa de episódios de violência policial nas favelas, exortou as famílias, moradores e líderes comunitários a se mobilizarem para ter voz frente os abusos. Ele parafraseou Raul Seixas para tentar confortá-las: "Sonho que se sonha só / É só um sonho que se sonha só / Mas sonho que se sonha junto é realidade".





Fonte: Maria Martín/ El País.








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