O mundo perdeu um grande ícone da liberdade e um verdadeiro estadista. Mandela sonhava em ver um país onde houvesse igualdade racial e igualdade de direitos sociais e pagou com sua liberdade por um bom tempo.
Quando ele foi preso, em 1962, a TV ainda era em preto e branco e a era da informática estava longe. Quando o homem foi à Lua, em 1969, só soube vagamente, pois era forçado a passar o dia quebrando pedras na prisão.
No dia 2 de fevereiro de 1990, quando cruzou os portões da penitenciária de Victor Verster, seu último cárcere, o líder negro sul-africano Nelson Mandela via o mundo pela primeira vez depois de mais de um quarto de século. Somente umas dez pessoas o haviam visitado no período.
Mas não havia tempo a perder. Três horas após ser libertado, Mandela já discursava para 60 mil pessoas. Depois de 27 anos de prisão, o homem que se transformara em mártir assumiria imediatamente a liderança e as negociações que levaram, pela primeira vez, a maioria negra ao poder na África do Sul. Chegava ao fim a era do cruel regime racista do apartheid, de quatro décadas.
Mas o sonho de Mandela não se cumpriu totalmente. Apesar de os negros estarem no poder, a grande maioria deles ainda vive em extrema pobreza.
A África do Sul está longe de ter superado décadas de discriminação racial, e o legado de Mandela perde força, desbotado pela passagem do tempo, as desigualdades econômicas e as mensagens populistas dos líderes atuais.
"África do Sul é uma sombra da nação que foi sob o mandato de Mandela, a nação que triunfou sobre o apartheid e iniciou a cura das feridas", escreveu a colunista Ranjeni Munusamy, do jornal sul-africano "Daily Maverick".
"Desde 1999, a reconciliação foi enfraquecida em favor do objetivo de alcançar o poder político", acrescenta Munusamy no artigo "O final da nação de Mandela", publicado em 2012.
No entanto, como comentou a Agência Efe Lucy Holborn, investigadora chefe do Instituto de Relações Raciais de Johanesburgo, "houve alguns avanços, mas ainda há muito o que fazer no desenvolvimento social e econômico".
Na opinião de Holborn, "existe uma igualdade formal, mas não há uma igualdade real no que se refere à propriedade, à renda e a riqueza".
"Os sul-africanos continuam a se identificar por raças, em parte pelas políticas de discriminação positiva, que seguem classificando os cidadãos segundo os grupos raciais que eram usados pelo apartheid: brancos, índios, negros e mestiços".
"Muita gente lembra o papel que teve Mandela, mas na população negra cresce o sentimento que deram o perdão aos brancos e, apesar disso, seguem marginalizados".
Esse sentimento aflora em algumas ocasiões, como em 29 de maio de 2012, quando centenas de sul-africanos negros se reuniram diante uma galeria de Johanesburgo que exibia um polêmico quadro que mostrava o presidente do país e líder do CNA, Jacob Zuma, com os genitais descobertos.
"Os brancos odeiam os negros" e "Não vamos ser tratados como seres inferiores" foram algumas das mensagens deixadas pelos manifestantes, incluídos dirigentes do CNA, em alusão ao autor da obra, o artista sul-africano branco Brett Murray.
Embora a Presidência de Mandela (1994-1999) "seja vista frequentemente com filtros cor de rosa", essa visão "mascara muitos dos grandes desafios a nação tem", disse à agência Efe Piers Pigou, membro da Comissão da Reconciliação e a Verdade, dirigida pelo arcebispo emérito Desmond Tutu, prêmio Nobel da Paz em 1984.
Pigou acredita que a época de Mandela no governo foi uma espécie de "cessar-fogo", pois só se abordaram "os mais flagrantes abusos do apartheid" mas não se desenvolveu "um verdadeiro diálogo sobre a reconciliação".
Por outro lado, o CNA, partido no poder desde que Mandela ascendeu à Presidência em 1994, domina ainda o panorama eleitoral graças a sua contribuição à democracia, apesar de ter perdido apoio nos últimos pleitos devido aos escândalos de corrupção.
Um discurso que apela cada vez mais às questões raciais e sua aposta por uma "segunda transição" no país africano fez com que ativistas como Mamphela Ramphele, que lutou junto de Mandela contra o "apartheid" e que criou recentemente o partido político "Agang" (Construir), tenham acusado o CNA de trair sua herança.
Além disso, o "herói" sul-africano deixa uma disputa entre o Estado, o Centro da Memória de Nelson Mandela, seus descendentes e o próprio CNA, que disputam a gestão da lembrança de Nelson Mandela, assim como seus direitos autorais, de propriedade intelectual e de imagem.
Trata-se de um legado do qual "todos querem ter uma parte", declarou a Efe um dos fotógrafos oficiais da família Mandela.
Por ora, "sua morte reavivará sua memória, a importância de sua tarefa e sua mensagem de reconciliação", lembrou a pesquisadora do Instituto de Relações Raciais.
E vaticinou: "depois os sul-africanos voltarão para sua vida cotidiana, e continuará o desmoronamento de seu legado".
Fonte: Marcel Gascón
Em Johanesburgo / Globo
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