Um surto global de bactérias resistentes a medicamentos ameaça os hospitais. Enquanto o desenvolvimento de novas drogas diminui, mais espécies tornam-se imunes aos antibióticos. No Brasil, a superbactéria KPC matou 106 pessoas em 2010 e 2011. Mas o antídoto pode estar num coral.
No início do ano, a médica-chefe do governo da Inglaterra, Sally Davies, fez um alerta sobre a ameaça que as bactérias resistentes a antibióticos representam, comparando-a ao terrorismo. Pode parecer exagero, mas a realidade é que há uma guerra em curso contra esses micro-organismos. E estamos em desvantagem. Um levantamento feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em 2013, 170 mil pessoas morreram vítimas de uma variação mais forte da tuberculose. Comparado ao número de mortes causadas por ataques terroristas em 2012 – cerca de 11 mil, segundo um relatório dos EUA –, tem-se a dimensão da gravidade do problema.
Se considerarmos as mortes associadas a outras bactérias multiresistentes, a tendência é que esse índice seja muito maior. Embora ainda seja impossível chegar a um cálculo exato, a organização acredita que as estimativas são conservadoras. “Quase todos os micro-organismos desenvolvem resistência a diferentes antibióticos e nós ainda não temos informações suficientes para traçar um panorama global”, explicou Pilar Ramón-Pardo, médica da Organização PanAmericana de Saúde, vinculada à OMS, em Washington, nos EUA.
É difícil mapear a incidência das superbactérias porque a maioria das infecções provocadas por esses organismos acontece em pacientes em tratamento de doenças graves, no interior de Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), já fragilizados por outras enfermidades. A maioria dessas bactérias surge dentro dos hospitais, onde se utiliza com maior frequência antibióticos. Grande parte dos centros de saúde não possui recursos suficientes para diagnosticar com precisão os casos.
No Brasil, uma mutação sinistra da Klebsiella pneumoniae, a KPC (Klebsiella pneumoniae carbapenemase), resistente à classe moderna dos antibióticos carbapenêmicos, tem sido encontrada em diversos hospitais. De acordo com os últimos levantamentos do Ministério da Saúde, a bactéria causou a morte de 59 pessoas em 2010 e de 47 em 2011.
Desvantagem
As bactérias desenvolvem resistência a medicamentos por meio da seleção natural, como descrito na teoria da evolução do naturalista Charles Darwin. Quando um grupo é exposto a um antibiótico, é comum que os organismos mais fortes sobrevivam. Eles podem transmitir suas características genéticas a outros e se multiplicar.
Alguns desses micro-organismos sofrem mutações e tornam-se mais resistentes. Dois anos depois do lançamento da penicilina como fármaco, em 1941, o primeiro antibiótico a ser utilizado com sucesso, já existiam registros de Staphylococcus aureus imunes ao re- ‘‘ médio. Mas novas drogas foram desenvolvidas para controlar os surtos da bactéria. Graças à descoberta da penicilina, a expectativa de vida do homem do século XX saltou de uma média de 40 para 80 anos em cerca de 100 anos.
Atualmente, o uso indiscriminado e irresponsável de antibióticos tem criado bactérias com mecanismos de resistência e mutações
mais complexas, colocando esse avanço em xeque. Pacientes que não seguem a prescrição, médicos que não recomendam o medicamento adequado e uso desnecessário das drogas na pecuária e na agricultura contribuem para a criação desse cenário. Um agravante é que a indústria farmacêutica não tem acompanhado a evolução desses micro-organismos.
“Desenvolver uma nova droga é extremamente caro. Antes de lançar um remédio no mercado a indústria farmacêutica tem de investir recursos em pesquisa, licenciamento, produção, divulgação, etc. Estima-se que um novo antibiótico demande dez anos e um investimento de US$ 1 bilhão”, diz Ramón-Pardo.
É muito dinheiro, até mesmo para multinacionais poderosas, e o custo-benefício é baixo. Vale mais a pena investir em produtos que não se desatualizam tão rapidamente, como remédios para controlar a pressão, por exemplo. Um estudo de 2009, publicado em um jornal de infectologia, revelou que apenas cinco das grandes farmacêuticas mantinham programas de descobertas antibacterianas até aquele ano.
As bactérias fazem parte de nossa vida. Além de estarmos rodeados por elas, muitas integram o nosso organismo e são importantes para seu funcionamento. É o que acontece no sistema digestivo, por exemplo, onde elas se encontram em forma colonizada e não oferecem risco. Quando há um desequilíbrio entre o nosso sistema imunológico e esses micro-organismos, e o corpo acaba exposto – por uma queimadura, um corte ou uma diarreia –, uma infecção pode se desenvolver.
Com a provável falência dos antibióticos, em dez ou 20 anos infecções que atualmente são facilmente tratáveis poderão evoluir para quadros graves de internação com risco de morte. Além disso, na ausência de drogas específicas, é necessária uma carga maior de antibióticos para matar as bactérias, o que pode causar efeitos colaterais maiores. “Esse é um problema epidemiológico sério que exige atenção. É preciso aumentar a possibilidade de o médico realizar diagnósticos mais precisos, mas muitas vezes falta recurso”, diz Luci Corrêa, coordenadora médica do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Albert Einstein.
Surtos no Brasil
Em julho de 2013, um surto de KPC obrigou a equipe do Hospital Maternidade Celso Pierro, da PUC-Campinas, a interditar a ala adulta da UTI por 30 dias. “De janeiro a outubro tivemos 63 pacientes colonizados com Klebsiella pneumoniae. Destes, 41 foram confi rmados com KPC e 21 desenvolveram infecções. O número aumentou em relação à nossa média histórica”, explica Irene da Rocha Haber, infectologista do Celso Pierro.
Foi preciso adotar procedimentos reforçados de higiene e de treinamento médico, de isolamento de pacientes e de exames rigorosos, para identifi car todos os focos de colonização pela resistente KPC. “Essas bactérias produzem enzimas que quebram um dos grupos de antibióticos mais modernos. O número delas aumentou bastante. São muito resistentes e acometem doentes potencialmente graves, causando infecções sérias”, afi rma o diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia, Marcos Antônio Cyrillo.
Entretanto, a gravidade dos casos de infecções por superbactérias no Brasil é menos alarmante do que em países como Portugal e Grécia, embora a incidência venha subindo. “Estamos vendo essas bactérias com cada vez mais frequência nas UTIs de nossos hospitais”, diz Cyrillo. “Cinco anos atrás, 2% das amostras de Klebsiella pneumoniae eram KPC. Atualmente esse índice subiu para 20%.”
Apesar do alerta vermelho, algumas medidas podem evitar o pior. Embora já existam registros de pessoas colonizadas por superbactérias na comunidade, a grande maioria dos casos se restringe aos hospitais. Como o contágio se dá pelo contato direto, procedimentos de higienização das mãos e dos instrumentos reduzem consideravelmente as chances de propagação.
O uso consciente de antibióticos por parte dos pacientes e a prescrição precisa pelos médicos bloqueiam o surgimento de organismos resistentes. O maior desafi o na guerra contra as superbactérias é encontrar uma forma de estimular a indústria farmacêutica a investir em novas drogas, bem como erradicar o uso de medicamentos na agropecuária.
Fonte: Camilo Gomide/Planeta.
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