Em 1935, o vendedor ambulante Bill Wilson e o médico Bob Smith fundaram nos Estados Unidos um grupo de apoio em que alcoólatras faziam reuniões sigilosas para trocar experiências e tentar abandonar o vício. Wilson e Smith tinham histórico de problemas com bebida, eram protestantes e acreditavam na força de uma organização missionária chamada Movimento de Oxford. Foi assim, como um grupo religioso, que nasceu o Alcoólicos Anônimos (AA), a maior instituição de combate à dependência do século 20, hoje com mais de 2 milhões de membros. Mas uma série de pesquisas vem questionando a base científica do famoso método dos 12 passos.
Quando surgiu, o AA foi recebido com desconfiança pela comunidade acadêmica por conta da sua ligação com a religião. Mas eventualmente membros do grupo começaram a financiar centros de pesquisa e oferecer suporte a políticas públicas de saúde contra a dependência, e aí as críticas cessaram. “O AA foi proclamado o tratamento correto contra o alcoolismo por mais de 75 anos, apesar de não haver qualquer evidência de que ele funciona. Estamos seguindo no caminho errado desde então”, afirma Lance Dodes no recém-lançado livro The Sober Truth: Debunking the Bad Science Behind 12-Step Programs and the Rehab Industry ("A Verdade Sóbria: Derrubando a Má Ciência Por trás dos Programas de 12 Passos e da Indústria da Reabilitação", sem edição em português).
Professor aposentado de psiquiatria da Harvard Medical School, Dodes é um dos maiores críticos do método. “Costumamos ouvir falar das pessoas que tiveram sucesso graças ao programa, e é natural concluir que elas representam a maioria. Na verdade, são uma minoria excepcionalmente pequena”, ele diz. Uma pesquisa feita internamente pelo AA em 2007 mostrou que 33% dos membros estavam sóbrios há mais de 10 anos, 12% estavam sóbrios entre 5 e 10 anos, 24% entre 1 e 5 anos, e 31% há menos de um ano.
Os indicadores parecem excelentes, mas a pesquisa obviamente levou em consideração apenas as pessoas que continuaram frequentando as reuniões. O problema é que a grande maioria abandona os encontros ainda no primeiro ano. De acordo com a publicação Alcoholism Treatment Quarterly, que avaliou a taxa de permanência dos membros no AA entre 1968 e 1996, 81% deles param de frequentar as reuniões durante o primeiro mês. Depois de três meses, só ficam 10%. E depois de um ano, só 5%. “Imagine se um médico indicasse reuniões em grupo para tratar problemas psiquiátricos, por exemplo. Soaria absurdo”, diz a americana Gabrielle Glaser, autora de Her Best Kept Secret (Seu Segredo Mais Guardado, sem versão em português), livro que relata o aumento do consumo de álcool entre mulheres.
Entre os participantes, 65% são homens e 35%, mulheres. A menor participação feminina pode ser explicada em parte pelo problema que as desistentes apelidaram de “13º passo”: o assédio dentro das reuniões. “Para muitos homens, as mulheres fragilizadas pela dependência são consideradas alvos fáceis”, diz Gabrielle. De acordo com o Journal of Addiction Nursing, que entrevistou 55 mulheres participantes do AA, pelo menos metade delas sofreu assédio nos encontros.
ANTES SÓ...
Em 2009, uma pesquisa com mais de 200 membros do Alcoólicos Anônimos no Brasil, realizada pela Universidade Federal de São Paulo, chegou a uma conclusão alarmante: as chances de um alcoólatra se curar no AA são virtualmente as mesmas daqueles que tentam parar sozinhos. De todas as pessoas que ingressam no grupo, apenas 19% participam das reuniões com frequência.
Quem deixou de comparecer aos encontros alega que os relatos pesados dos outros participantes não ajudaram na recuperação. “Percebi que não sou uma alcoólatra, como eles me tratavam, mas simplesmente uma pessoa que buscava apoio na bebida. Com meu marido acontecia o mesmo, e ele conseguiu reduzir o consumo a quase zero sem ajuda alguma”, afirmou uma desistente americana que participou do programa por dois anos.
Nas contas do próprio AA, apenas 36% dos membros continuam comparecendo às reuniões depois de um ano. O empresário aposentado Silvio Magalhães, porta-voz do Alcoólicos Anônimos no Brasil e frequentador do grupo há 35 anos, admite que o começo é mais difícil. “O AA faz com que você mude seu comportamento, e isso toma tempo. Os primeiros dias são cruciais. Mas depois, a pessoa começa a sentir prazer em participar e ajudar quem chega pela primeira vez”, ele diz.
JUSTIÇA DIVINA
A indicação do Alcoólicos Anônimos como parte da pena para pessoas que cometeram crimes sob influência do álcool foi declarada inconstitucional nos EUA em 1996. Por conta da conotação religiosa — seis dos 12 passos estão de alguma forma associados à religião —, os juízes seriam proibidos de incluir visitas ao AA nas sentenças. Mas pesquisas feitas pelo próprio grupo indicam que, todo ano, 165 mil americanos e canadenses são obrigados a participar do programa por decisão judicial.
No Brasil, o Alcoólicos Anônimos tem 6 mil sedes, cerca de 90 mil frequentadores, e mantém parcerias com empresas e instituições públicas de saúde — as Unidades Básicas de Saúde da Família de São Paulo, por exemplo, costumam encaminhar pacientes para a instituição. Mas a maior parte dos frequentadores, segundo Magalhães, é indicado por especialistas favoráveis ao método dos 12 passos: “A maioria das pessoas chega até aqui por recomendação de médicos, psicólogos e psiquiatras”.
De fato, existem profissionais que defendem a importância das reuniões em grupo. “Para muitas pessoas, a interação que o AA proporciona é bastante positiva. Fornece segurança para o alcoólatra sentir que não está sozinho, e que sua batalha já foi vencida por outras pessoas”, afirma Bettina Hoeppner, professora de psiquiatria do Massachusetts General Hospital.
Para os críticos, além do método questionável, o AA tem pelo menos mais um grande problema: a culpabilização do dependente quando o tratamento dá errado. “Quando não funciona, os membros são responsabilizados: eram fracos, não estavam comprometidos, não rezaram o suficiente”, diz o jornalista David Sheff no livro Clean: Overcoming Addiction and Ending America’s Greatest Tragedy (Limpo: Superando o Vício e Acabando com a Maior Tragédia da América, sem tradução para o português). Isso resultaria na impressão de que os alcoólatras sofrem de um desvio moral, e não de um problema de saúde: “A culpa nunca é do método, mas dos pacientes, e esse é um dos maiores problemas do Alcoólicos Anônimos”.
OS 12 PASSOS
Metade dos mandamentos do Alcoólicos anônimos está de alguma forma vinculada à religião. Saiba quais são eles:
1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool — que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.
2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade.
3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos.
4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.
5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.
6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.
7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.
8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.
9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.
10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.
11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade.
12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.
Fonte: Tiago Cordeiro/Galileu.
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