segunda-feira, 4 de maio de 2015

Porque ainda existe revolta racial nos EUA!



Da varanda de sua casa, voltada para um estacionamento em Anacostia, bairro no sudeste de Washington, a aposentada Elaine Bush diz ter perdido a conta dos crimes que presenciou.

O último foi há poucos dias, ela conta à BBC Brasil. "Três mulheres desceram do carro e esfaquearam um homem parado na esquina. Ele sobreviveu, mas parece que ainda está no hospital", afirma Elaine, de 72 anos.

Habitada quase exclusivamente por negros, esta região da capital americana tem os índices de violência mais altos, as maiores taxas de pobreza e algumas das piores escolas da cidade.
Na manhã da última sexta-feira, mulheres com bebês de colo esperavam para ser atendidas por assistentes sociais num centro comunitário, enquanto moradores de rua abocanhavam pedaços de peixe frito servidos por uma igreja.

Do outro lado da ponte que liga Anacostia ao resto de Washington, porém, o cenário muda radicalmente conforme se avança para o noroeste da capital, um dos metros quadrados mais caros dos Estados Unidos e reduto de funcionários públicos, diplomatas estrangeiros e universitários. Muda também a cor dos moradores: os negros quase desaparecem da paisagem, enquanto os brancos se tornam maioria.

As diferenças ilustram a segregação racial que vigora em várias cidades dos EUA, 50 anos após a Suprema Corte declarar inconstitucionais as leis que separavam negros e brancos. Segundo analistas, a segregação e a desigualdade alimentada por ela estão na raiz dos episódios de violência policial que têm provocado protestos pelo país.

A última grande manifestação ocorreu na segunda passada em Baltimore, a 60 km de Washington. O ato terminou com 144 veículos destruídos, 15 focos de incêndio e 202 prisões, segundo a polícia local. O protesto foi convocado após a morte, sob custódia da polícia, do jovem negro Freddie Gray.

Nos últimos meses, outras mortes de negros por policiais - entre as quais a de Michael Brown em Ferguson, Missouri, e a de Eric Garner em Staten Island, Nova York - levaram milhares de pessoas às ruas em várias cidades americanas e reavivaram o debate sobre violência policial e racismo nos Estados Unidos.

Bairros brancos e negros
Um estudo publicado no fim de março pelo Brookings Institution, um centro de pesquisas e debates em Washington, analisou a composição racial nos bairros da cidade de 1990 a 2010. A pesquisa revelou que quase todos os bairros no leste da cidade têm ampla maioria negra, enquanto os bairros a oeste são habitados majoritariamente por brancos.

No período coberto pela análise, quase não houve mudanças nesse padrão. Segundo a prefeitura de Washington, dentre os seus 660 mil habitantes, os negros são o grupo mais populoso (49,5%), seguidos por brancos (35,6%), hispânicos (10,1%) e asiáticos (3,9%).

O estudo afirma que os bairros da capital americana com ampla maioria branca têm menos de 10% de suas famílias abaixo da linha da pobreza, enquanto nos bairros negros o índice é de 22%. A pesquisa revela ainda que, enquanto 97% dos adultos em bairros brancos concluíram o ensino médio, nas áreas negras 82% fizeram o mesmo.

Richard Rothstein, pesquisador associado do Economic Policy Institute e professor da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia (Berkeley), diz que as divisões raciais de Washington se repetem em Baltimore, Ferguson e em outras cidades onde mortes recentes de homens negros geraram repercussão nacional.

Desvalorização de áreas centrais e empobrecimento dos negros colaborariam para aumento de tensão nos EUA
"É um padrão que se vê no país todo porque as políticas que criaram essa segregação foram nacionais", ele diz à BBC Brasil.
Entre 1930 e 1950, afirma Rothstein, o governo americano concedeu empréstimos para que construtoras erguessem casas nos arredores das cidades com a condição de que não fossem vendidas a negros.

Graças aos subsídios federais, famílias brancas de baixa renda se mudaram para os subúrbios, enquanto famílias negras de renda equivalente foram deixadas nas áreas centrais das cidades.
Aos poucos, diz Rothstein, os empregos também se deslocaram para os subúrbios. Como as cidades americanas careciam de bons sistemas de transporte, a população urbana (majoritariamente negra) empobreceu.

A valorização dos subúrbios, por outro lado, enriqueceu as famílias brancas que haviam comprado casas subsidiadas. "Com o dinheiro que conseguiram com essa valorização, elas mandaram seus filhos para a faculdade e lhes garantiram bons empregos."

Enquanto isso, os bairros centrais se deterioraram e ficaram superpovoados. Os governos passaram então a demolir construções antigas e a subsidiar aluguéis para seus moradores.
Essas práticas, diz o pesquisador, geraram um dos maiores abismos existentes entre brancos e negros americanos. "Hoje uma família negra média ganha 60% da renda de uma família branca média, mas os bens imobiliários de uma família negra equivalem a apenas 5% dos de uma família branca."

Juventude rebelde
A desvalorização das áreas centrais e o empobrecimento dos negros, diz ele, foram acompanhadas pela piora da qualidade de suas escolas.

"Numa área com altas taxas de desemprego, pobreza e de abandono escolar entre os adultos, os pais não têm condições de ajudar os filhos em suas atividades e as escolas entram em colapso. Não importa o quanto se invista nessas escolas, os professores nunca poderão dar a atenção adequada a tantos alunos que necessitam de acompanhamento especial."

A deterioração das escolas, diz Rothstein, é central para entender a violência policial contra negros."A falência das escolas cria uma juventude rebelde, sem esperança nem empregos. Eles se tornam uma ameaça à polícia, e a polícia se torna uma ameaça para eles."

Nem o fim das políticas abertamente segregacionistas foi capaz de pôr fim às divisões, diz Rothstein. "Desde 1968, alguns afro-americanos conseguiram comprar casas em subúrbios brancos. Mas a maioria das casas nessas áreas é hoje cara demais para trabalhadores negros, cujos avós poderiam tê-las comprado durante o boom dos subúrbios se não houvesse restrições na época."

Outro obstáculo atual para que negros se mudem a subúrbios brancos, diz ele, são leis de zoneamento que proíbem a construção de residências para classes baixas nessas áreas. Além disso, ainda hoje donos de imóveis podem se recusar a alugar suas casas a beneficiários de programas habitacionais, restringindo-lhes ainda mais a oferta de áreas disponíveis.

Quando subúrbios aceitam moradias populares e donos de imóveis concordam em alugá-los a beneficiários de programas habitacionais, muitas vezes acabam por se tornar majoritariamente negros também. É o caso de Ferguson, cidade que integra a região metropolitana de Saint Louis, e de subúrbios no Estado de Maryland nos arredores de Washington.

Segundo Rothstein, nos últimos 50 anos, as diferenças entre negros e brancos se agravaram. "Embora uma pequena classe média negra tenha se integrado ao eixo da sociedade americana, os que ficaram para trás estão mais segregados hoje que nos anos 1960".

Cidade em transformação
Na varanda de sua casa, Elaine Bush diz se preocupar com os dez filhos, 22 netos e 18 bisnetos - quase todos moradores de bairros de maioria negra em Washington e arredores.

Elaine afirma que a cidade mudou muito desde sua infância, vivida em outro bairro negro no nordeste da capital. Após várias décadas de decadência, ela afirma que Washington voltou a receber investimentos e cita como exemplo os vários edifícios em construção entre Anacostia e o centro administrativo da cidade.

"Todos percebemos que Washington está mudando", ela diz. "Infelizmente, não está mudando para as minorias."



Fonte: BBC 

Nenhum comentário:

Postar um comentário